terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O fio de Penélope

Penélope é uma personagem criada por Homero, na obra Odisseia. Esposa de Odisseu, ela é o símbolo da espera resiliente e da fidelidade conjugal, pois durante 20 anos ela aguarda Odisseu retornar da Guerra de Troia, tendo rejeitado dezenas de pedidos de casamento. Uma das estratégias para evitar os pretendentes foi dizer a eles que tecia uma mortalha para o funeral de Laerte, pai de Odisseu, alegando que somente aceitaria um pedido de casamento quando o manto estivesse pronto. Por três anos, Penélope tece um pequeno pedaço do sudário durante o dia e desmancha o trabalho durante a noite, retardando assim o prazo para a escolha do pretendente; uma de suas servas acaba denunciando publicamente a estratégia de Penélope e ela precisa encontrar novas táticas. Durante a Guerra de Troia, Penélope recusou 108 pedidos de casamento. Por fim, Odisseu retorna para Penélope e seu pai, velho e doente, para quem tecia a mortalha, viria a morrer anos depois do retorno.

A história de Penélope me encanta. Não por ser ela o símbolo da espera paciente, do amor esperançoso ou da velha ideia de que existam pessoas pelas quais se vale a pena esperar. Não, o que me encanta no mito é a estratégia, tão humana, de adiar decisões, de evitar a saída das tais "zonas de conforto", de se afastar de coisas e pessoas potencialmente ameaçadoras e, ao mesmo tempo, potencialmente gratificantes. Por diversos motivos, todos nós já criamos desculpas para evitar novidades; desde as simples "não posso, meu pai não me deixa sair com o carro durante a semana" ou "não tenho dinheiro", passando por todas as que versam sobre obrigações, como "preciso estudar", "hoje vou limpar a casa/lavar roupa" e chegando às de enunciado elaborado, como "não me imagino beijando alguém que se chama Osmailson", "tive aflição da coleção de imagens de São Francisco de Assis que ele tem em casa", "jamais me encontraria com alguém que use mocassim preto com meia branca".

Na vida real e atual, cada um de nós já deve ter-se percebido em trabalho de Penélope, atrasando ou simplesmente buscando explicações que não justificam o fato de não caminharmos para frente. Inúmeros podem ser os motivos da evitação: recusa em aceitar o término de um relacionamento, medo de se magoar novamente e insegurança com novidades são os mais óbvios. Todos esses motivos são comuns e não representam sinais de qualquer problema emocional mais grave; pelo menos uma vez durante a vida, todos nós já nos sentimos amedrontados com novidades, preferindo continuarmos com a ideia ou a lembrança "segura" de alguma pessoa-zona de conforto em vez de nos lançarmos ao desconhecido.

Creio que quando nos damos conta de qual é a funcionalidade dessas justificativas, fica mais fácil pensarmos em maneiras de burlar nossa própria sabotagem. Sim, é uma sabotagem: evitar possíveis novas e gratificantes situações, em troca de viver de uma esperança de que o ex volte ou que ele mude o suficiente para o namoro ser minimamente tolerável. Para enfrentar isso, é necessário conhecermos nossas Penélopes internas e assumirmos que o relacionamento acabou, que Odisseu não vai voltar e que há muitos pretendentes possivelmente interessantes, se permitirmos que eles se aproximem.

Não se trata de deixar o romantismo de lado e esquecermos que um dia amamos e fizemos planos de vida com nossos Odisseus; trata-se de aprendermos o limite entre a espera paciente e o medo de encarar a realidade do fim de uma relação.

(Texto revisado e revisitado, quase re-escrito, do original "O manto de Penélope", de minha autoria, publicado no Blog do Meu Primo)

sábado, 30 de novembro de 2013

A caixa.

Desculpe-me, mas hoje precisei pensar em você. Há muitos meses já me habituei a trancafiá-lo numa caixa e escondê-la na memória. Mas fique tranquilo, a caixa é bem bonita, de madeira, com suas iniciais marchetadas na tampa, bem encerada para brilhar mesmo no recôndito mais escuro. 

Abri a caixa e deixei-o ressurgir no melhor inteiro que, hoje, você pode ser meu. Seu sorriso apertado veio de imediato diante dos meus olhos, seguido pela sua voz macia, um veludo sonoro que, mesmo quando está apenas falando, sempre me deu calma. Uma paz que, atual e infelizmente, só pode existir no meu imaginário. Mesmo que hoje sejam apenas memórias, fico muito contente com a certeza de que, pela eternidade de algumas semanas, esse sorriso e essa voz estiveram comigo, fazendo-me leve, aliviando o sofrimento daqueles dias nublados em pleno julho, o mês em que as nuvens de verdade somem da cidade. 

E hoje precisei abrir a caixa encerada. Queria mesmo era o seu abraço, firme, silencioso e macio. Mas na falta da realidade, serve-me apenas lembrar de tudo que conversamos. Não dos papos sérios, queria mesmo era conversar descontraidamente sobre o quanto é tedioso lavar talheres, sobre a pintura do seu quarto, que só ficou concluída pouco tempo antes de você se mudar, sobre o tamanho exagerado das taças de vinho naquela adega elegante em que fomos. 

Você foi absolutamente competente em trazer luz e calor a um coração gélido e ressequido. Foi na esperança de, outra vez, ter luz por esses dias novamente difíceis que eu retirei a caixa encerada do cantinho em que ela fica e a destranquei. Embebi-me nas suas lembranças ao som daquela música da Maria Bethânia que conheci contigo, abri um vinho e senti a luz atravessando a lente na frente dos meus olhos. Acabou Bethânia, fechei a caixa e a recoloquei no canto escuro da minha memória. Não quero gastar toda a doçura que guardo atrás da marchetaria. Posso precisar de novo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A realidade por trás de uma mirada.

Gosto de pessoas reais. E pessoas reais sofrem de vez em quando. Pessoas reais não são fortes o tempo todo: elas choram quando é necessário e sorriem quando é fácil de sorrir. Difícil confiar em alguém que consegue sorrir mesmo quando o mundo cai ao seu entorno.

Gosto de pessoas com aquele olhar que trai a fala. "Estou bem, de verdade" e o olhar negando. Repito a pergunta e a pessoa admite: "não, não estou bem, na verdade". Não que o sofrimento alheio me cause excitação, é apenas que uma pessoa que fala das suas fraquezas é alguém corajoso, sem medo de ouvir uma resposta atravessada do tipo "sai dessa, pra que sofrer?". Tem que ser muito destemido para enfrentar o julgamento alheio sobre a desnecessidade de seus sentimentos.

Gosto de olhares. Olhares quentes, olhares macios, olhares sorridentes, olhares apertados, olhares demorados, olhares furtivos. Eu quero saborear o olhar do outro; devagar, com cuidado, detalhadamente. Quero cada instante que eu puder ter do teu olhar. Prestar atenção às cores que mudam com a luz que incide no olho. O olho, em si, não é nem belo nem feio. É só o objeto-meio pelo qual vaza a expressão contida no coração, a ideia represada na mente, a memória engaiolada nos cantos do cérebro.

Pessoas de verdade com olhares sinceros me conquistam pela eternidade.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Conectado e desconectado

Ontem lembrei do chori em La Boca. Da caipirinha na Praia Mole. Das rabas em Iguazu. Das incontáveis reuniões com os mesmos amigos no mesmo bar na 104 Sul. Lembrei daquela mancha de vinagre escuro que lhe ensinei a retirar com água com gás, naquele restaurante caro do shopping.

Lembrei das filas nos cinemas para assistir a qualquer filme muito ruim, só para passarmos mais tempo juntos. Das séries assistidas na tela pequena do computador, aquele com adesivo do Snoopy, ombros e cabeças encostados. E de quando você ficava acordado até a madrugada do meu lado entretido com seus jogos, enquanto eu dormia, plácido, agarrado à sua mão livre.

Lembrei também dos passeios às lojas, apenas para olhar. Sempre as mesmas lojas, sempre os mesmos produtos à venda, nada novo e mesmo assim tudo interessante. E que entre uma olhada e outra, eu falava em comprar algo tão útil quanto um jogo de espátulas para patê. E de que todas as vezes você me olhou com cara de "para que você precisa disso?" e que eu não entendia a sua praticidade para com a vida, praticidade que nunca tive.

Lembrei de tudo isso e me vieram à mente as risadas que demos juntos. E as lágrimas que rolaram paralelamente pelos nossos rostos. Risos e choros que quase sempre tinham os mesmos motivos.

E hoje eu acordei sorrindo e chorando. Sozinho.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre culpa e perdão (Capítulo 2)

- Dicupa eu??
No texto anterior, finalizo o assunto com a suposição de que evitar viver talvez seja a melhor maneira de evitar sentir culpa. Um pouco dramática essa asserção e confesso que o drama foi proposital, no sentido de sinalizar que é, muito provavelmente, impossível viver sem sentimento de culpa. Retorno ao assunto com o intuito de refletir sobre formas de tentar minimizar ou excluir o sentimento de culpa, quando este já está presente. Para tanto, gostaria de começar a discussão pela diferença etimológica que existe entre as palavras "desculpa" e "perdão".

"Desculpa" é fácil. Des- significa "retirar", e culpa é culpa mesmo. Ou seja, retirar a culpa, simples. Ora, como se faz para "retirar a culpa" de alguém?

Em primeiro lugar, a culpa é um sentimento de quem ofendeu, magoou, rompeu ou quebrou algo ou alguém. É um sentimento único que, apesar de depender de condições concretas de vida, é uma experiência privativa de quem o sente. E este sentimento surge quando percebemos que um ato nosso foi prejudicial a outra pessoa. Aí é onde reside o pulo-do-gato: transitar da percepção de ter prejudicado alguém e reconhecer publicamente que foi o autor da injúria, mesmo que não intencional. Este reconhecimento, que normalmente é verbal, "reconheço que te prejudiquei e peço que retire minha culpa", é a face observável do ato de desculpar-se. Pedir desculpas é, etimologicamente falando, pedir para que a parte injuriada reconheça que, apesar de ter havido a mágoa, o outro não planejou o ato. Não foi intencional, não houve, dentre os motivos, o objetivo de ferir ninguém. Cabe a quem ouve o pedido de desculpas responder ou não com outra verbalização: "apesar de ter me magoado, entendo que não foi intencional..." e é somente aí que faz sentido a ideia de que alguém "retire a culpa" de outra pessoa. Na verdade, ninguém retira sentimento de ninguém. É impossível que outra pessoa acesse nossa intimidade e "retire com a mão" um sentimento tão singular, tão privado. O que o outro faz é simplesmente decidir se o reconhecimento da autoria do ato prejudicial e a justificativa de não-intencionalidade são confiáveis.
- Pufavô pufavô pufavô???

Existe aqui outro pulo-do-gato: há pessoas que reconhecem a autoria do prejuízo, apresentam a alegação de não-intencionalidade e em seu íntimo, na verdade, houve intenção sim de prejuízo. Jamais saberemos se o pedido de desculpas é sincero ou não; apenas podemos ter uma noção mais ou menos acertada sobre a veracidade das desculpas.


"Perdão" é mais complicado. Em latim, o prefixo per- indica a ideia ou conceito de algo em seu maior grau ou valor, como na palavra "perfeito", aquilo que é feito na sua melhor e mais valorizada forma. O -dão do perdão deriva de donnum, que em latim é o mesmo que dom, dádiva. Perdoar é dar(-se) ou doar(-se) por completo e na sua melhor forma.

Interrompo por aqui este segundo capítulo sobre o assunto, para me dedicar ao perdão em um texto que trate apenas dele. Continuem acompanhando a saga da culpa no meu, no seu, no nosso blog. Beijinhos.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Sobre culpa e perdão (Capítulo 1)

Sentimento de culpa é algo infinitamente engraçado.

Trata-se, a rigor, do sentimento provocado por condições aversivas que nos são aplicadas quando nós, ainda crianças, somos punidos. Não qualquer punição: a culpa é especificamente aquele sentimento de dupla aversividade: uma por estar sujeito a uma punição e outra por termos ofendido ou magoado alguém que nos dá amor e carinho.

Aos poucos, não é necessário haver punição real para que venha a culpa: só pelo fato de se "saber" que tal ação foi danosa a alguém e que poderia ser punida, nos sentimos profundamente chateados por ter "pisado na bola". Da mesma forma, não é necessário que a ofensa seja a alguém que nos ame, nós nos tornamos capazes de sentir culpa por ofendermos desconhecidos. Ou até apenas por pensar em ofender. Deve lá ter sua função adaptativa, pois muitas cagadas são evitadas pela simples possibilidade de ocorrer a culpa.

Apenas pela complexidade deste sentimento, já é possível ficarmos entretidos horas e horas, avaliando se aquela culpa que sentimos por décadas é realmente necessária: será que desejar ou pensar que uma pessoa seria mais produtiva morta do que viva deve ser, obrigatoriamente, um mal? Será que eu, nos recônditos da minha privacidade, não tenho o direito de desejar ou imaginar coisas ruins aos outros? O que, afinal, é digno de ser punido, o pensamento/desejo ou o ato de ofender aos outros?

Obviamente há defensores do bem que dirão que sim, é possível "pecar até em pensamentos". Tenho um pouco de pena de pessoas assim, devem conviver com monstros internos inimagináveis, cercadas por muros altos e sólidos que as separam do belo e perfeito mundo que poderia ser destruído por sua maldade de coração. Evitar viver é, talvez, a forma mais eficiente de não sentir culpa.

Encerro essa postagem de forma um pouco sem sentido, mas ainda preciso de um tempo para processar minhas ideias sobre como é possível se livrar da culpa. Prometo voltar em breve com um novo texto.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

What choice do I have?



Brenda: Eu acho que é tudo apenas aleatório.
Nate: Sério?
Brenda: É. Nós vivemos, nós morremos. No fim das contas, nada tem sentido algum.
Nate: Como você consegue viver desse jeito?
Brenda: Sei lá, às vezes eu acordo tão desgraçadamente vazia que eu desejo nunca ter nascido. Mas que escolha eu tenho?

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sentimentos são só sentimentos (capítulo 2)

POR QUE VOCÊ NÃO ME AJUDA, COMPUTADOR?
Faz tempo que pensei em escrever um texto sobre uma viagem que fiz no meu aniversário, em fevereiro. Mas olha, preciso descobrir uma fórmula de como produzir textos desvinculados dos sentimentos que tenho no momento de sentar à frente da tela do computador. 

E foram MUITAS as vezes que tentei escrever. Mas a vontade era de escrever sobre outras coisas, sobre aflições e desesperos e alegrias e satisfações que aconteciam no dia... enquanto isso, a viagem lá de fevereiro ficou em fevereiro mesmo, não compareceu no presente.

Será que é possível escrever sem se deixar levar pelo rio de sentimentos? Parece que essa vinculação não faz lá muito sentido, sabe? Poxa, escrever é escrever, é razão, é pensamento, é organização mental... e sentimentos, bem... são apenas sentimentos...

E daí que depois de fevereiro, zilhões de coisas aconteceram, provocando zilhões de sentimentos... e olha que viajar no meu aniversário para um lugar bacana era um sonho desde 2006. A vida simplesmente minou o contentamento todo que senti nessa viagem.

Se alguém quiser e, ou, puder me ajudar a escrever sem ser sobre algo urgente que está dentro do meu peito, por favor se pronuncie. Grato.

A direção.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

E se sexo não fosse tudo na vida de alguém?

"Ele comentava sobre a esposa como se ela fosse um doce de pessoa, gentil, meiga, simpática, inteligente e compreensiva... ontem bati no apartamento deles e ela me atendeu. Me apresentei, disse que era colega de trabalho do marido dela, pedi um não-sei-o-que emprestado e só faltou ela cuspir na minha cara e me chamar de puta... que raiva dessa gente que acha que homem não pode ter amiga mulher, já acham que ele vai sempre querer comer ela ou ela vai sempre querer dar pra ele..."

E isso ocorreu em 2013. A esposa do amigo da minha amiga é pessoa supostamente esclarecida, da classe média e com alto nível educacional. Depois de entrar em contato com essa e algumas outras histórias, fico imaginando o quanto nossas vidas, nossas idéias, concepções, reações e sentimentos são calcados numa eterna e fantasiosa possibilidade de que as pessoas, quando possível, comerão umas às outras.

A supervalorização do sexo, assim como para minha amiga da história, é algo que me irrita de muitas formas. É como se todas as motivações humanas orbitassem a possibilidade de comer/ser comido(a); basta que o marido tenha uma amiga mulher que a esposa, automaticamente, já a encara como uma pistoleira capaz de seduzi-lo. O contrário também é válido: se a esposa tem um amigo homem, o marido logo imaginará que o cara só quer levar a mãe de seus filhos para a cama e ela, como boa safada, irá corresponder, obviamente. E não pensem que esse é um mal exclusivo entre heterossexuais: entre casais homo, muitas vezes basta que um(a) dos(as) dois/duas tenha ou queira ter amizades com outros(as) gays/lésbicas para que a situação seja tratada pelo(a) parceiro(a) como uma foda-para-acontecer-a-qualquer-momento.

Não digo que nunca sofri deste mal, não mesmo. Sou fruto da minha história cultural e "aprendi" que todo mundo está nessa vida apenas para se deitar nu pelas esquinas escuras da cidade com o(a) primeiro(a) que aparecer. Acontece que, à medida que o tempo passa, é necessário que outras coisas importantes ocupem nossos pensamentos e o sexo seja posto em seu devido lugar: coisa importante na vida, mas não A MAIS importante.

É como se não pudessem existir intenções de relacionamento baseadas em amizades, em interesses mútuos, em pensamentos compartilhados, em rir das mesmas coisas, em apoio desinteressado a alguém que se gosta. Como se a qualquer instante uma troca de afeto pudesse se tornar uma trepada. Ok, isso acontece sim, não sou ingênuo de negar... mas imaginem como seria o mundo se todos os seus amigos e amigas apenas quisessem tirar uma casquinha de você. Me parece uma limitação insensata do potencial de formação de vínculo que nós desenvolvemos ao longo de milhares de anos de evolução da espécie.

Sigmund Freud propôs, no início do Século 20, que a energia de vida é composta principalmente pela energia sexual, quebrando o tabu de se falar sobre sexo em uma época absolutamente conservadora. Entretanto, o próprio Sigmund, ao ver que suas idéias começaram ainda durante a sua vida a ser mal interpretadas, certa vez disse: "às vezes, um charuto é apenas um charuto", numa inequívoca alusão a interpretações sexuais feitas sobre o seu hábito de fumar.

Da mesma forma, às vezes, um amigo é apenas um amigo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Vamos falar sobre Kinsey?

Recentemente fiz algo que geralmente não faço, que é entrar em um embate virtual sobre sexualidade humana. Minha motivação foi o artigo "'Heterossexualidade não é natural, é compulsória', diz sociólogo", da jornalista Cléo Francisco, publicado em 15/4/2013 na seção Comportamento do portal UOL Mulher. Obrigado, Cléo, você provocou a ira de muitas pessoas e me instigou a respondê-las. Obrigado nada, passei muita raiva tentando discutir com preconceituosos.

Nos comentários à matéria, os argumentos mais utilizados para discriminar e marginalizar a homo e a bissexualidade foram a "naturalidade" e a "majoritariedade" do comportamento heterossexual, como forma naturalmente selecionada de reprodução da espécie. Foi então que eu comentei que, entre as espécies animais, especialmente aves e mamíferos, comportamentos homossexuais são amplamente conhecidos, descritos e relatados cientificamente. Ora, se a homossexualidade existe na natureza, e se tivemos centenas de milhões de anos de processo evolutivo, então é um comportamento que TAMBÉM foi naturalmente selecionado (beijos, Darwin). Obviamente, responderam ao meu comentário com um "na natureza também tem doenças". Não vou entrar no mérito de que as doenças também foram naturalmente selecionadas e de que o valor que se dá, bom ou ruim, a algo é uma arbitrariedade humana. Mas fiquei na dúvida: gente, decidam-se, vamos falar sobre o que é natural ou sobre o que não é natural?

Não não, vamos falar sobre Kinsey.

Alfred Kinsey (1894 - 1956) foi um pesquisador estadunidense que se dedicou à pesquisa da sexualidade humana e foi pioneiro neste campo científico. (Psicanalistas, me perdoem: mas vocês sabem que Freud não fez pesquisas, né?) Em 1948 publicou a obra "Comportamento Sexual no Homem" e em 1953, "Comportamento Sexual da Mulher" e estes dois livros, resultados da aplicação de mais de 10 mil questionários, ficaram conhecidos como o Relatório Kinsey. Kinsey e sua equipe levantaram com os pesquisados, dentre muitas outras informações sobre práticas sexuais, dois dados importantes: se o(a) entrevistado(a) pratica sexo com homens ou mulheres, com qual frequência de cada, e se sente atração por homens ou mulheres, com qual frequência de cada. A partir desta pequena parte dos dados obtidos, Kinsey descreveu estatisticamente a orientação sexual entre humanos, desenvolvendo uma escala que ficou conhecida como Escala Kinsey. A escala varia do item "0 - exclusivamente heterossexual" a "6 - exclusivamente homossexual". Vejam só que interessante: os escores obtidos nesses dois extremos da escala foram virtualmente idênticos, cerca de 12% cada um, ligeiramente mais alto no item 0. Ou seja, a heterossexualidade EXCLUSIVA é tão "minoria" quanto a homossexualidade EXCLUSIVA. A maioria esmagadora, cerca de 65%, dos 10 mil pesquisados responde sexualmente ou pratica sexo PREFERENCIALMENTE com um dos sexos, mas INCIDENTALMENTE/EVENTUALMENTE/MAIS DO QUE EVENTUALMENTE responde ou pratica com o outro. Destes 65%, mais de 2/3 já chegaram ao orgasmo em pelo menos uma relação homossexual na idade adulta. Sugiro como leitura a página do Kinsey Institute, vale a pena mesmo sendo em inglês: The Kinsey Institute.

O Relatório Kinsey e a escala nos mostram algo que, a meu ver, é um dos maiores achados científicos sobre sexualidade humana: nós, Homo sapiens sapiens, somos absurdamente complexos. Nossa sexualidade NÃO PODE ser definida como homo, bi ou heterossexual. Aliás, esta compartimentalização é meramente didática. Quem é o gay que NUNCA transou com uma mulher? Qual é a lésbica que NUNCA deu para um homem? Qual é o "pai de família, casado com dois filhos, pagador de impostos e homem de bem" que nunca sentiu atração por outro homem? Sentir atração pelo mesmo sexo, ou mesmo transar com alguém, incidental, eventual ou mais do que eventualmente, faz de alguém gay ou lésbica?

Creio que todos nós devemos ler e reler Kinsey ao longo das nossas vidas, muitas vezes. Para lembrarmos do quão babacas podemos ser se tentarmos etiquetar seres humanos.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Se ao menos eu tivesse um cérebro...

Um dos livros que li durante minha graduação se chama "Comportamento Humano Complexo". Desde aquela época acho engraçado este título: existem comportamentos humanos simples? Nos últimos capítulos, os autores tratam do mais complexo dentre toda a complexidade: o comportamento verbal.

(pausa para simplificações grosseiras da Análise do Comportamento, desculpa profª Vânia, desculpa Skinner)

Comportamento não-verbal é aquele que tem consequências diretas.

A- tenho sede
B- pego um copo de água
C- bebo água

Típica análise A-B-C, Antecedente, Behavior, Consequência.

Comportamento verbal é aquele que tem consequências mediadas por outro sujeito.

A¹- tenho sede
A²- tem outro sujeito perto
B-  digo: "sujeito, traga-me um copo de água, por favor"
C¹- o sujeito pega um copo de água e traz para mim
C²- bebo água

Este episódio verbal básico é só o início, eu poderia descrever uma longa cadeia de comportamentos, incluindo eu dizer "obrigado" para o outro sujeito e o meu agradecimento se torna Consequência para os Behaviors dele, que por sua vez sorri, o que se torna Consequência para meu "obrigado" etc. etc. etc.

(fim da pausa para simplificações grosseiras da Análise do Comportamento e início das conclusões grosseiras acerca disso tudo)

A partir disso, percebam o quanto o comportamento verbal nos prepara para o mundo. Não precisamos manipular nosso ambiente de forma imediata, podemos manipular o outro para que ele manipule nosso ambiente. O ambiente humano é, portanto, uma rede de manipulações de comportamento.

Ao mesmo tempo que o comportamento verbal nos prepara para o mundo, também nos impede de sermos tão suscetíveis à manipulação: uma vez que eu "falo para mim mesmo" como funcionam as coisas com o sujeito X ou Y, esta "fala interna" (conhecida popularmente como "pensamento", "consciência" e sinônimos) nos prepara para rompermos o ciclo de manipulação. Em condições ideais, eu posso parar de mediar as consequências para o outro: "ah, levante-se e pegue você mesmo sua água!"

Ao processo de observar correlações e criar "falas internas" sobre elas chamamos "raciocínio", que é a base das diferenças entre nós e todas as outras espécies animais. Viver sem este processo é o primeiro passo para nos mantermos manipuláveis. Animais não criam falas internas, não raciocinam, não são capazes de saber de antemão como se comportar com os outros sujeitos. E mais importante: não são capazes de compartilhar com os outros os seus aprendizados, senão na forma da interação. Nós sempre podemos escrever ou falar os nossos pensamentos e, com isso, alertar aos outros; em parte, é assim que nós aprendemos que devemos olhar para os dois lados da rua para que não morramos atropelados, a lavarmos as mãos para evitar contaminações, a trabalhar a vida toda para podermos usufruir de uma velhice confortável décadas depois...

Pensar liberta o ser humano dos outros seres humanos. Simbolicamente, é como o desejo do Espantalho de O Mágico de Oz: ao pensar, ele é capaz de sair da estaca na qual estava amarrado. If I only had a brain...


quarta-feira, 10 de abril de 2013

Ki vagyok én?

O maior aprendizado científico, filosófico, humano e social que a formação em Psicologia me proporcionou é a compreensão de que as coisas só existem em relação. Não há nada que seja absoluto, nenhuma existência-em-si. As coisas existem? Sim, elas existem e essa afirmação (por vezes chamada de "visão positiva") é fundamental para a ciência tal como é conhecida. Mas o mais importante não é afirmar a existência das coisas e sim, qual é a relação entre as existências.

A antiga questão filosófica de que "se uma árvore cai no meio da floresta e ninguém presencia, é possível afirmar que ela caiu?" pode ser respondida tanto com "sim, caiu"  (se o fenômeno foi presenciado e registrado), quanto por "não se sabe". A meu ver, a resposta mais completa seria "depende".

Se a árvore cai, pode ser que não haja registro consciente/verbal/escrito/pensado feito por algum Homo sapiens sapiens. Neste sentido, pode-se dizer que, em relação ao montante de conhecimentos acerca da realidade, a queda de uma árvore não provocou impacto. Pode até ter caído, mas para que ou quem isso é importante? O que me parece é que a queda da árvore só faz sentido para (e se) provocou um start de relações e correlações com tudo o que há a sua volta. Depende das consequências que provoca para ser conhecida. Fenômenos físicos, químicos, biológicos e também psíquicos, sociais e humanos só fazem sentido em relação.

Parece simples chegar a essa conclusão e aceitar as consequências disso. Entretanto, as complicações apenas começam neste exato momento em que se admite a relatividade do mundo. Passemos para o campo da existência humana, tão aclamada e valorizada em todos os campos do conhecimento. Vamos imaginar um (possível) Sr. Oláh Géza, nascido em Sarkad, Condado de Békés, Hungria. Esta pessoa existe?

Sim e não.

Existe para quem o conhece. Existe para quem age/reage/interage(iu) com ele. Existe agora, que citei neste texto e agora que, pelo menos na forma de um nome escrito com oito letras no total, ele provocou impacto em quem neste momento lê meu texto. Para quem não leu e não interagiu com o Sr. Oláh, ele continuará a não existir.

Filosófico demais? Não. Pretendo não entrar no mérito da Análise Comportamental, mas para quem está familiarizado com a abordagem, é fácil perceber o quanto esta discussão também é científica e psicológica.

Ampliando um pouco mais a questão, remodelo a pergunta: "eu existo?" Existo para quem sofre as consequências do meu ser-no-mundo. Existo para mim mesmo, humano e dotado de autoconsciência (e minha autoconsciência só existe na minha relação com o outro, mas esta é questão para outro texto). Mas, com quase toda a certeza possível, eu não existo para o Sr. Oláh. Relação injusta essa, eu não existo para ele, mas ele passou a existir para mim enquanto escrevia este texto.

E vocês, existem?

terça-feira, 2 de abril de 2013

Antes de partir

Não me preocupo se não houver ninguém me esperando do outro lado. Aliás, há mais de uma década que eu abandonei a ideia de que pode haver algo além da morte, este país não descoberto de cujos territórios nenhum viajante retorna, nas palavras de Hamlet.

Não, não me preocupo com o depois. Minha preocupação é o antes.

Quem vai me contar uma história antes de partir?

Depois de ver essa cena ontem (clique no link abaixo e assista e chore), jurei ficar uns bons anos sem assistir Tomates Verdes Fritos:





sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Somos todos loucos aqui

Quando escrevo sobre meus sonhos, sempre o faço sem a ideia de premonições ou de interpretações. São apenas imagens e sons e sentimentos que me chocam, me divertem ou me deixam pensativo sobre outras situações. Não é nada diferente desta vez.





Sonhei com abraços. Com carinho. Com conforto. Com pés de um roçando nos pés de outro. Com calor me envolvendo. Com um perfume que, por deus, ficou no meu nariz até quase a hora de ir trabalhar.


Sonhei com um sorriso, amplo, sincero, direcionado a mim e somente a mim. Um sorriso que, à medida que o sonho foi terminando, sobrou apenas ele pairando no ar, até sumir por completo.


Foi bom. Foi embora.

E acordar foi triste. Desesperador.

C'est la vie.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Homem e o Amor

Vitório é desses homens antigos. Em diversos aspectos, se não em todos. Casou-se com uma de suas ex-alunas, de nome Graça, na idade adequada, após conseguir um bom e digno emprego. Antes de casar, preocupou-se em namorar e noivar pelo tempo conveniente para a época: sete anos, no total. Ele e sua esposa tiveram três filhos, todos homens. Orgulhos do pai, pois como um homem de seu tempo, Vitório valoriza filhos homens.

Para os três, Vitório foi exemplo de hombridade, honestidade, dedicação, provimento. Nunca deixou faltar conforto material à família, não sem antes fazer longas preleções sobre economia e consumo consciente. Às vezes, após julgar o gasto supérfluo, demonstrava com o rosto que não aprovava a liberação do dinheiro requisitado. Ao final, sempre com semblante mui sério, acabava cedendo aos pedidos de gastos dos filhos ou da esposa. Ganhar dinheiro e gastar com a família era, afinal, sua melhor habilidade, assim como o é aos homens típicos da sua época.

Entretanto, algo não saiu como ele esperava. Seus filhos não eram típicos homens, não da forma como, em sua cabeça, deveriam. Não se mostraram dados a esportes, pescarias ou a ceder aos impulsos provocados por seus hormônios masculinos. Sim, pois a honestidade de Vitório é também bastante típica de homens da sua idade: ela acaba quando o assunto são as mulheres.

E Vitório teve outras mulheres além de Graça. Teve uma filha com uma das outras, inclusive. E por mais de 10 anos, manteve relacionamento paralelo com outra das outras. Seus filhos, mesmo os que desejam mulheres, não aprovaram o comportamento do pai. Não se sabe se é pela flagrante contradição em seu conceito de honestidade ou por terem, logicamente, preferido defender a mãe, que além de ser também exemplo de caráter, lhes ensinou a amar e a serem amados.

Faltou, talvez, o elemento principal em todo o ensinamento de Vitório aos filhos. Ele ofereceu tudo, menos o que é irracional: o amor. Graça conquistou o amor dos filhos; Vitório não foi tão competente. Aquele pai, aparentemente perfeito e de conduta ilibada, falhou naquilo que, justamente, é negligenciado por homens antigos. Afeto não combina com varões, na sua avaliação.

Hoje, com os filhos adultos, Vitório tenta recuperar o tempo perdido, o carinho da prole, a confiança e o papel de exemplo-mór de caráter. Difícil avaliar se é tarde para isso. Talvez não seja; talvez ele apenas seja inábil ou talvez os filhos saibam que podem aceitar o amor do pai, mas não querem. São adultos, afinal, podem escolher seus caminhos e com quem se relacionar.

Retifico, então, a segunda sentença deste texto - Vitório é desses homens antigos. Em todos os aspectos.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Comida

Fui criado pela minha avó. Meus pais trabalharam fora de casa até o final da minha adolescência e nesses quase 20 anos foi minha avó materna quem assumiu a incumbência de fazer de mim quem eu sou. Coitada, me fez desse jeito que vocês conhecem.


Minha abuelita era filha de espanhóis. Gente mediterrânea, assim como gregos, italianos, turcos, hebreus, palestinos e norte-africanos. E como tal, a comida tem especial importância na vida prática, nas relações humanas e na forma de lidar com os sentimentos. Há uma piada étnica que diz que judeus pensam, até os sete anos de idade, que seu nome é Coma Isso, pois essa é a frase que mais se ouve em um lar judaico... crianças gregas e mouras também sofrem desse bullying alimentar.


Voltando à minha avó: sempre suspeitei que ela cozinhava para não ter que expressar os sentimentos dela. A vida difícil de mulher "desquitada" nos anos 1950 a tornou uma pessoa dura, sem crença no ser humano; por outro lado, uma excelente cozinheira. Não deve ser aleatória essa coincidência. Lembro bem de vezes em que ela chegava e me perguntava o porquê da minha cara aburrida... sem saber muito o que dizer, ela fazia alguma torta recheada de carinho, capaz de conter lágrimas e aquecer corações.

Eventualmente, percebo que passo horas planejando o que vou cozinhar, dia a dia. Qual vai ser o dia de fazer feijão, quantas vezes farei frango na semana, qual é o dia de não comer carne... coincidentemente, nesses períodos é quando me percebo mais fugidio, mais esquivo de mim mesmo. "Cabeza vacía, oficina del Diablo", então tratemos de ocupar a mente e os dias. Com comida.