quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O Homem e o Amor

Vitório é desses homens antigos. Em diversos aspectos, se não em todos. Casou-se com uma de suas ex-alunas, de nome Graça, na idade adequada, após conseguir um bom e digno emprego. Antes de casar, preocupou-se em namorar e noivar pelo tempo conveniente para a época: sete anos, no total. Ele e sua esposa tiveram três filhos, todos homens. Orgulhos do pai, pois como um homem de seu tempo, Vitório valoriza filhos homens.

Para os três, Vitório foi exemplo de hombridade, honestidade, dedicação, provimento. Nunca deixou faltar conforto material à família, não sem antes fazer longas preleções sobre economia e consumo consciente. Às vezes, após julgar o gasto supérfluo, demonstrava com o rosto que não aprovava a liberação do dinheiro requisitado. Ao final, sempre com semblante mui sério, acabava cedendo aos pedidos de gastos dos filhos ou da esposa. Ganhar dinheiro e gastar com a família era, afinal, sua melhor habilidade, assim como o é aos homens típicos da sua época.

Entretanto, algo não saiu como ele esperava. Seus filhos não eram típicos homens, não da forma como, em sua cabeça, deveriam. Não se mostraram dados a esportes, pescarias ou a ceder aos impulsos provocados por seus hormônios masculinos. Sim, pois a honestidade de Vitório é também bastante típica de homens da sua idade: ela acaba quando o assunto são as mulheres.

E Vitório teve outras mulheres além de Graça. Teve uma filha com uma das outras, inclusive. E por mais de 10 anos, manteve relacionamento paralelo com outra das outras. Seus filhos, mesmo os que desejam mulheres, não aprovaram o comportamento do pai. Não se sabe se é pela flagrante contradição em seu conceito de honestidade ou por terem, logicamente, preferido defender a mãe, que além de ser também exemplo de caráter, lhes ensinou a amar e a serem amados.

Faltou, talvez, o elemento principal em todo o ensinamento de Vitório aos filhos. Ele ofereceu tudo, menos o que é irracional: o amor. Graça conquistou o amor dos filhos; Vitório não foi tão competente. Aquele pai, aparentemente perfeito e de conduta ilibada, falhou naquilo que, justamente, é negligenciado por homens antigos. Afeto não combina com varões, na sua avaliação.

Hoje, com os filhos adultos, Vitório tenta recuperar o tempo perdido, o carinho da prole, a confiança e o papel de exemplo-mór de caráter. Difícil avaliar se é tarde para isso. Talvez não seja; talvez ele apenas seja inábil ou talvez os filhos saibam que podem aceitar o amor do pai, mas não querem. São adultos, afinal, podem escolher seus caminhos e com quem se relacionar.

Retifico, então, a segunda sentença deste texto - Vitório é desses homens antigos. Em todos os aspectos.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Comida

Fui criado pela minha avó. Meus pais trabalharam fora de casa até o final da minha adolescência e nesses quase 20 anos foi minha avó materna quem assumiu a incumbência de fazer de mim quem eu sou. Coitada, me fez desse jeito que vocês conhecem.


Minha abuelita era filha de espanhóis. Gente mediterrânea, assim como gregos, italianos, turcos, hebreus, palestinos e norte-africanos. E como tal, a comida tem especial importância na vida prática, nas relações humanas e na forma de lidar com os sentimentos. Há uma piada étnica que diz que judeus pensam, até os sete anos de idade, que seu nome é Coma Isso, pois essa é a frase que mais se ouve em um lar judaico... crianças gregas e mouras também sofrem desse bullying alimentar.


Voltando à minha avó: sempre suspeitei que ela cozinhava para não ter que expressar os sentimentos dela. A vida difícil de mulher "desquitada" nos anos 1950 a tornou uma pessoa dura, sem crença no ser humano; por outro lado, uma excelente cozinheira. Não deve ser aleatória essa coincidência. Lembro bem de vezes em que ela chegava e me perguntava o porquê da minha cara aburrida... sem saber muito o que dizer, ela fazia alguma torta recheada de carinho, capaz de conter lágrimas e aquecer corações.

Eventualmente, percebo que passo horas planejando o que vou cozinhar, dia a dia. Qual vai ser o dia de fazer feijão, quantas vezes farei frango na semana, qual é o dia de não comer carne... coincidentemente, nesses períodos é quando me percebo mais fugidio, mais esquivo de mim mesmo. "Cabeza vacía, oficina del Diablo", então tratemos de ocupar a mente e os dias. Com comida.